terça-feira, 4 de março de 2008

TEMA DO MÊS - ABORTO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA


ALGUNS ASPECTOS JURÍDICOS DO ABORTO

Colaboração: Leandro Augusto Conforti de Oliveira - advogado e membro da Diretoria da Associação Espírita "O Bom Samaritano".

Nos termos dos artigos 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, todo atentado abortivo contra o feto é crime. Apenas em duas situações é permitido o abortamento em nosso país: quando há risco para a gestante (CP, art. 128, I: aborto necessário) ou quando a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II: aborto humanitário ou sentimental).
A título de curiosidade, a exceção do aborto humanitário ou sentimental (estupro) foi admitida pelo legislador visando não permitir que se integre à família um 'bastardo', pois a lei civil presume que o marido de uma mulher casada é o pai de seu filho. Assim, como ensina a Desembargadora Berenice Dias, a gravidez, mesmo decorrente de violência sexual, faz com que o filho do estuprador seja reconhecido como filho do marido da vítima e herdeiro do patrimônio familiar. Essa é a justificativa para a possibilidade do chamado aborto sentimental, apesar de não haver nenhuma preocupação com o sentimento da vítima.
Questão interessante surge na hipótese de aborto de feto anencefálico (aborto de feto com crânio mal formado ou no caso de hidroanencefalia). De cada 10.000 nascimentos no Brasil, oito são anencefálicos. Muitas gestantes e sua família, assim como alguns médicos, mesmo correndo risco de serem processados, praticam o aborto anencefálico. Diante da lei há crime e a exceção somente acontece quando o Judiciário, em cada caso concreto, concede autorização para o ato do abortamento.
Visando uma solução para essa complicada questão, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS, no início de 2004, ingressou no STF com uma "ação de descumprimento de preceito fundamental" (ADPF 54 QO/DF), visando a obter da Corte Suprema uma interpretação conforme à Constituição de vários dispositivos legais do Código Penal, justamente os que cuidam do delito de aborto (CP, arts. 124, 125, 126 e 128).
Questiona-se na citada ação se o aborto anencefálico acha-se ou não inserido no âmbito da proibição legal; se o aborto anencefálico é ou não crime.
O Ministro Marco Aurélio, em julho de 2004, deferiu liminar que passou a amparar, com eficácia erga omnes (para todos), todos os casos de aborto anencefálico no nosso país. Em outubro do mesmo ano o Pleno do STF (por sete votos contra quatro) cassou a liminar, sob o argumento de que era satisfativa (uma vez feito o aborto, caso o mérito da ação não fosse julgado procedente, a situação seria irreversível; a vida, quando eliminada, não tem retorno).
Na aludida ação, pendente de julgamento até a presente data, em discussão encontra-se de um lado o interesse público na proteção do bem jurídico vida (do feto), de outro o interesse individual da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade, que, em última instância, se sintetiza na dignidade da pessoa humana. Vários Ministros do STF já deram evidências, em julgamentos ou entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por interromper a gravidez se for detectada a anencefalia, sob o argumento de que não se trata de aborto, porque não há chance de sobrevivência do feto fora do útero.
O tema é muito complexo, pois, embora o art. 5º da CF assegure a inviolabilidade do direito à vida, nenhum direito é absoluto. Alguns juristas entendem que aludida regra deve ser conjugada com a do art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. O que se deve conter é o arbítrio, o abuso, o irrazoável. Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em crime, na medida em que se tem, de um lado, uma vida inviável (todos os fetos anencefálicos morrem, em regra poucos minutos após o nascimento), de outro, um conteúdo nada desprezível de sofrimento (da mãe, do pai, da família etc.).
Argumentam ainda os defensores do aborto anencefálico, que a Constituição realmente exige a preservação e a tutela da vida, todavia, com dignidade. Exigir que uma mãe carregue em seu ventre um ente, sem qualquer chance de sobrevida é não só matá-la psiquicamente, como constrangê-la ao sofrimento dramático que ninguém tem o direito de impor-lhe.
E ainda, para essa corrente de entendimento, a morte do feto (cuja vida está cientificamente inviabilizada) é feita em respeito a outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade, liberdade etc.). Contudo, advertem que é preciso que se constate, com toda clareza, a inviabilidade do feto, pois esse fato, aliado a vários outros interesses relevantes em jogo (sofrimento da gestante, angústia, afetação de sua saúde mental e psicológica, dignidade humana etc.) é que torna a antecipação do parto uma medida razoável. Fora das hipóteses de inviabilidade certa da vida, jamais se pode conceber o aborto.
Existem atualmente, para os casos permitidos por lei (risco de vida da gestante e estupro) algumas normas técnicas expedidas pelo Ministério da Saúde, como por exemplo a de PREVENÇÃO E TRATAMENTO DOS AGRAVOS RESULTANTES DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES E ADOLESCENTES, estipulando as regras, formas e métodos para se fazer o abortamento, fixando como tempo limite o período de 20 (vinte) semanas de gestação.
Quanto à descriminalização do aborto (qualquer tipo de aborto), alguns juristas entendem que ela se faz necessária, em razão dos reclamos atuais da sociedade. Argumentam que o Código Penal data do ano de 1940, época em que a sociedade estava condicionada a preceitos conservadores de origem religiosa.
Afirmam ainda, que "independente do conteúdo punitivo de natureza penal, a criminalização do aborto não tem caráter repressivo, porque nem toda gravidez decorre de uma opção livre. Basta ver os surpreendentes índices da violência doméstica e da violência sexual. Para quem vive sob o domínio do medo, não há qualquer possibilidade de fazer a sua vontade prevalecer. Por isso as mulheres conciliam fé, moral e ética com a decisão de abortar".
Argumento de peso levantado por eles a favor do aborto é que "a situação de submissão que o modelo patriarcal da família ainda impõe à mulher, não lhe permite negar-se ao contato sexual. Persiste ainda a infundada crença de que o chamado débito conjugal faz parte dos deveres do casamento. A vedação de origem religiosa ao uso de métodos contraceptivos submete a mulher à prática sexual sem que possa exigir o uso da popular camisinha. Diante de todas essas restrições, imperativo é reconhecer que a gravidez não é uma escolha, havendo a necessidade de admitir-se sua interrupção".
Segundo essa corrente liberal, além de não se poder proibir a interrupção da gravidez, o Estado teria o dever de proporcionar recursos para sua prática, assegurando os meios para sua realização de forma segura. Dizem "tratar-se de questão social, pois a clandestinidade em que é realizado põe em risco a vida de milhões de mulheres. O aborto é um fato social existente e não deve ser ignorado".
Tramita no Congresso Nacional um Anteprojeto de Reforma do Código Penal, segundo o qual não constitui crime o aborto praticado por médico se:
- não há outro meio de salvar a vida ou preservar a saúde da gestante; a gravidez resulta de violação da liberdade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida;
- há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de a criança apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais.
O tema é muito polêmico e está longe de ser pacificado, pois afora toda a problemática legal acima apontada, existem ainda os preceitos de ordem moral e religiosa.
Creio, como operador do Direito, que as hipóteses que excepcionam o aborto como crime deveriam ser um pouco mais abrangentes, como aquelas previstas no Anteprojeto acima mencionado, deixando a decisão de interromper ou não a gravidez (apenas nesses casos extremos), ao livre arbítrio da gestante.
No entanto, pessoalmente entendo que qualquer que seja o problema pelo qual a gestante esteja passando, com exceção do risco de perder a própria vida, não há justificativa para a interrupção da gravidez, pois bem sabemos que nada neste mundo acontece ao acaso e, se infortúnios nos ocorrem, com certeza são reflexos de nossos próprios atos, praticados ao longo de nossa caminhada existencial.
Por fim, que fique bem claro que o Kardecismo, a não ser para salvar a vida da própria gestante, não aprova qualquer tipo de conduta abortiva, mas que os pontos acima abordados (apenas alguns dentre vários outros passíveis de discussão), sirvam para que reflitamos com maior profundidade sobre o assunto, não só para melhor entendê-lo, mas também para que compreendamos o ato (para nós espíritas equivocado) cometido por muitas gestantes, que um dia, certamente, terão a oportunidade de repará-lo.
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(fonte de pesquisa : artigos postados no site jusnavegandi.com.br pelo Professor Luiz Flávio Gomes e pela Desembargadora o TJ/RS Maria Berenice Dias)

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