sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

TEMA DO MÊS - COTAS RACIAIS:



COLABORAÇÃO - ILAR GORETH RIBEIRO (Professora Universitária)


Cotas: pagamento de uma dívida social


O sistema de cotas raciais pode ser considerado como pagamento de uma divida adquirida desde a escravidão.


A história da expansão da Europa nos mostra o preconceito do branco europeu contra aqueles que apresentavam uma cor de pele diferente. Em nome da superioridade da cor e da religião, ou por medo de aceitar o diferente desconhecido, o europeu subjugou, escravizou e massacrou raças variadas. Segundo Heloisa Toller [1] (1988), quando a escravidão somou-se à cor como “base de estigmatização” surgiram atitudes e padrões que “já podem ser considerados racistas”, se racismo estiver associado ao preconceito e à discriminação. A autora julga mais correto ver as atitudes e os padrões “como pré-racistas ou proto-racistas, se definirmos o racismo, com Fredrickson, como uma teoria pseudocientifica, postulando a inferioridade inata e permanente de outras raças.”


Visto dessa forma, o racismo tem “suas raízes no pensamento biológico do século XVIII” que defendia a teoria de que as diferenças “anatômicas e fisiológicas explicariam a inferioridade intelectual do negro.” (TOLLER, 1988). Vale lembrar, ainda com base em Toller, que essa era a opinião autorizada de brancos, esclarecidos e detentores de poder, sobre as potencialidades dos negros. Tal fato criou e difundiu um dos estereótipos do negro, que passou a ser visto como incapaz, pois era comprovada a sua “inferioridade”. Como ser incapaz e inferior dependia da bondade e da proteção do senhor que decidia o que era bom ou ruim para o seu protegido, em troca da liberdade e da eterna gratidão.


Essa visão estereotipada entrou no Brasil com a escravidão e permanece até hoje, ainda que velada. Atualmente temos brancos autorizados decidindo o que é bom ou ruim, e seguindo o pensamento do século XVIII, quando instituem o sistema de cotas raciais. Os “autorizados”, com essa medida, atestam a inferioridade intelectual dos negros, reforçando o estereótipo do “negro vítima” [2], que necessita da proteção e bondade do senhor para poder realizar o sonho de entrar na universidade, ainda que algumas instituições de defesa dos direitos dos negros levantem essa bandeira.


Percorrendo a história e conversando com afro-descendentes, constata-se que a proclamada inferioridade intelectual não existe, existiu ou existirá. Serão encontrados artistas de várias áreas, intelectuais, ministros, médicos, advogados etc. Poucos, é certo, não por incapacidade, mas pelo “tratamento social e historicamente discriminatório” [3] dispensado à raça africana e que, para muitos, está presente na ajuda oferecida pelo sistema de cotas.


É fato que a escravidão foi a responsável pela redução do negro a um nível subumano, condição que se acentuou com a abolição quando os ex-escravos foram banidos das fazendas e do centro das cidades, sendo obrigados a se abrigarem nos morros, matos e nas periferias.


Na visão de Toller (1988), após a abolição fica a noção de que “o branco, tendo ‘dado’ ao negro a liberdade, desvinculava-se de qualquer obrigação posterior para com ele: o problema agora era seu, não do branco”, assim os negros ficaram jogados a sua própria sorte, abandonados, sem o senhor protetor.


Essa é a dívida. Como existe, no dizer de Domicio Proença Filho, uma “necessidade de a nação libertar-se da mancha da escravidão”, vem, ainda que tardio e por vias tortas, o pagamento: instituir o sistema de cotas, dar aos negros condições para participar efetivamente da sociedade por meio do ingresso na universidade. E para sair? E para se firmar no mercado de trabalho? Também serão instituídas cotas? Ou será que o pensamento oitocentista voltará maquiado: “te foi dado o privilegio de entrar na universidade, agora o problema é seu”. Instituído o sistema de cotas, os negros passam a enfrentar diferentes, constrangedoras e veladas armadilhas marginalizadoras, do momento da inscrição à saída da universidade e, quem sabe, até depois.


A dívida deve ser paga? Deve, mas não resgatando o estereótipo do “negro vítima”, pois o negro brasileiro não pode ser tratado como o outro, que tanto trabalhou pela grandeza da nação etc. e a quem se deve reconhecimento especial por isso, como não cabe agradecer aos brancos portugueses ou aos índios, mas também não deve tratar-se como o outro em nome de sua auto-afirmação. Como os demais grupos étnicos, ele é parte da comunidade que fez e faz o país, na visão de Domicio Proença em artigo sobre a trajetória do negro na literatura brasileira.


Sem emprego, meios para sobreviver dignamente e sem poder participar efetivamente da sociedade, os ex-escravos formam a classe dos menos favorecidos financeiramente. Essa nova situação cria outros estereótipos, que não cabe aqui discutir. E é justamente no “menos favorecidos” que alguns defensores do sistema de cotas de apegam. A idéia de fazer com que os “menos favorecidos” consigam entrar na universidade é legítima, sem dúvida, mas tem-se que levar em consideração que desse grupo fazem parte brancos, pardos, amarelos, sendo assim a oportunidade deve ser aberta a todos. No entanto devemos considerar que qualquer medida relacionada a cotas e que tenta beneficiar grupos, étnicos ou não, seja no âmbito escolar ou de trabalho, fere o princípio de igualdade. Todos somos iguais e temos os mesmos direitos, no entanto...


Outro fator a ser considerado refere-se ao preconceito que pode ser acentuado, gerando uma, digamos, rejeição pelas minorias favorecidas pelas cotas. Assim dilacera-se também a fraternidade. Não há espírito fraterno que resista ao sentimento de injustiça que aflora em candidatos que julgam terem perdido uma vaga, na universidade ou no trabalho, por conta das cotas.


Se a nação tem uma dívida com o negro, também a tem com outros grupos marginalizados e/ou desprovidos de recursos financeiros. A lista é grande, e a dívida social também. Para quitá-la, talvez fosse preciso oferecer cotas para o grupo que, hoje, está fora da lista. Ou reformular e oferecer um ensino de qualidade desde a base, além de condições para que todas as parcelas da sociedade, por mérito e escolha, possam, dignamente, entrar e concluir um curso superior. A segunda hipótese seria a mais justa, mas não rende votos.


Resta-nos, então, torcer para que os beneficiários das cotas consigam da melhor maneira possível realizar os seus sonhos.






[1] GOMES, Heloisa Toller. O negro e o romantismo brasileiro. São Paulo: Atual, 1988.


[2] FILHO, Domicio Proença. “A trajetória do negro na literatura brasileira”,


[3] FILHO, Domicio Proença. Op. cit.

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